Entrevista - Gabriel Campos: “Blockchain é uma tecnologia que simplificará a vida do cidadão”

11/11/2019
13:55:52

Gabriel Campos de Souza é Oficial Registrador Titular do Cartório do 2º Ofício de Capela/SE, pós-graduado em Direito Processual Civil, Direito Imobiliário e diretor de Tecnologia e Qualidade da ANOREG/SE. Desde a sua adolescência, mostrou-se curioso por tecnologia, informática e pela área imobiliária. Juntar as preferências foi um caminho natural percorrido durante a carreira. O resultado é um profissional gabaritado naquilo que faz, além de um grande apoio para o sucesso dos projetos da ANOREG/SE. Nesta entrevista, Gabriel Campos traça um panorama completo sobre blockchain, servindo de referência para todos os que querem compreender mais desta tecnologia.

1 – Cada vez mais estamos ouvindo falar do termo “blockchain”. O que vem a ser esta tecnologia?

Blockchain é o nome dado à tecnologia de registro distribuído, do tipo de Base de Dados distribuídos e compartilhados, com registro de transações individuais e em blocos, caracterizada pela guarda de registro de transações permanentemente e à prova de violação através da criação de índice global linear e cronológico de todas os atos. Pela característica de funcionar como um índice global linear e cronológico, a blockchain tem sido denominada de livro-razão público.

A blockchain é composta por uma rede peer-to-peer (pessoa-pessoa) e por um banco de dados distribuído descentralizado. Uma rede peer-to-peer consiste num formato de redes de computadores onde cada um dos pontos da rede funciona como cliente e como servidor, permitindo compartilhamentos de serviços e dados entre si sem a necessidade de um servidor central. Essa rede serve melhor para o armazenamento de objetos imutáveis em face do compartilhamento dos dados entre os computadores, tais como músicas, vídeos, imagens, tarefas, trabalhos ou dados em formato digital em geral. A utilização desse tipo de rede para objetos mutáveis tem o desafio de gerenciar a sequência de versões daquele determinado dado digital e identificar a versão recente. Para isso, uma rede peer-to-peer pode usar servidores confiáveis para gerenciar a sequência de versões dos arquivos. Cada computador na rede (par ou parceiro) tem iguais privilégios e influência no ambiente.

Na rede blockchain, quando uma nova transação entra na rede, essa transação é propagada por todos os pares, que atuam como os nós da rede. Nela, a informação é criptografada para que seja possível identificar apenas a validade do ato.

Banco de dados consiste num conjunto organizado e ordenado de dados de arquivos relacionados entre si com informações sobre pessoas, lugares ou coisas. Esse conjunto organizado de dados se relaciona de forma a criar algum sentido aos dados e dar mais eficiência durante uma pesquisa ou estudo.

Banco de dados distribuído consiste na disponibilização da integralidade do banco de dados organizado e ordenado a todos os participantes da rede. Todos os usuários têm armazenado uma cópia de toda informação existente. Se um usuário deixa a rede, as informações compartilhadas permanecem. Se um usuário (nó) entra na rede, recebe informações de todos os usuários (nós) que já estão na rede.

Um banco de dados, como conjunto organizado e ordenado de dados de arquivos relacionados entre si, precisa ter um início. Esse início pode ser conceituado como bloco gênese, que é o estado inicial do sistema codificado no software. O banco gênese contém informações sobre as regras ou instruções sobre o banco de dados a ser composto.

Na blockchain, o banco de dados é formado pela sequência de transações (série de blocos) entre as partes (peer-to-peer) que juntos formam uma cadeia de transações. A essa cadeia de transações (blocos) dá-se o nome de blockchain.

Cada bloco na cadeia contém informação ou transações entre as partes. À medida que mais transações são adicionadas, as informações são guardadas no bloco de acordo com o momento em que ela foi processada. A inserção das informações no banco de dados em determinado tempo cria um histórico que documenta as transações no banco de dados, daí porque se caracteriza como um livro-razão compartilhado pelos atores na rede (peer-to-peer).

Após as transações serem organizadas cronologicamente no bloco, uma assinatura (hash) é adicionada ao final do bloco. O hash é vinculado ao bloco imediatamente anterior na cadeia.

Estas assinaturas (“hashes”) formam as ligações entre as cadeias até chegar ao bloco gênese. O hash é configurado para incluir o número do bloco atual, o número do próximo bloco da cadeia, a data, o momento que foi assinado e a quantidade de transações inclusas no bloco presente. O hash é apresentado ao usuário como uma chave criptografada.

Na blockchain, o algoritmo de consenso é um conjunto finito de ações executáveis que visam obter uma solução para o problema da confiança através do estabelecimento de regras para inclusão de novos dados na rede. Pelo algoritmo de consenso, nenhum dado inserido pode ser apagado e todas as novas inserções devem ser acreditadas por todos.

As regras do algoritmo de consenso são definidas pelos próprios atores (nós) participantes da blockchain.  Somente pode ser considerado que um novo bloco foi criado caso este atenda também a regra definida pelo Algoritmo de Consenso. Assim, o novo bloco é incluído no blockchain, tornando os novos dados públicos.

Exemplo: um cidadão solicita lavratura de escritura de compra e venda dentro da rede; um cartório de notas recebe a solicitação e inicia o processo de lavratura da escritura; após a lavratura e antes da assinatura das partes, aquela escritura no meio eletrônico será enviada para o grupo de competência (cartórios de notas); o Algoritmo de Consenso escolhe alguns atores ou nós da rede (1, 2, 3 ou mais) para validar aquela transação pelas regras contidas no Algoritmo de Consenso; a validação poderá ser totalmente eletrônica, manual ou híbrida e será feita por outros cartórios de notas, que fazem parte do mesmo grupo de competência; validada a escritura, ela é encaminhada para as partes para assinatura; após a conclusão, o ato é finalizado, criptografado e recebe um hash para ser adicionado ao bloco; com a adição ao bloco, a transação passa a pertencer à rede.

A definição de um Algoritmo de Consenso pelas partes envolvidas faz com que as decisões sobre o que será inserido na blockchain não dependam de nenhuma parte centralizadora, garantindo assim a sua independência. Cada ator na rede tem a capacidade de verificar a autenticidade de cada bloco contido na blockchain e constatar por si só a autenticidade de todos os dados nele inseridos.

2 - Podemos chamá-la de “mais uma revolução tecnológica” dentre as quais temos convivido ultimamente?

Sim. A blockchain é uma revolução tecnológica. Sua descoberta se deu há pouco mais de 10 (dez) anos. E essa tecnologia é revolucionária porque:

1) Utiliza-se de outras novas ferramentas tecnológicas (rede peer-to-peer – pessoa a pessoa) e banco de dados descentralizado; 2) permitiu a criação de moeda digital que serve como meio de pagamentos; 3) permitiu que os usuários escrevam contratos ou checklists de transações inteligentes com parametrizações personalizadas; 4) permitiu a formação de organizações autônomas descentralizadas, que consiste numa organização autogovernada, não influenciada por forças externas, estabelecida através de um software que opera por si só com regras imutáveis escritas na blockchain, tendo como objetivo fornecer um modelo de negócio descentralizado para todos os participantes na rede; 5) descentralizou a confiança entre as partes através do estabelecimento de regras comuns (smart contracts); 6) permite o compartilhamento de dados simultâneos com validação por todas as partes.

3 – De que forma a blockchain está sendo inserida no ambiente cartorário?

Como dito, blockchain é tecnologia de banco de dados distribuídos usada por agentes para criar e registrar transações individuais ou em blocos. As transações consistem em relações entre partes e dependem de manifestação de vontade. Logo, a tecnologia blockchain depende da manifestação de vontade dos agentes para criação de transações e para validações destas. Sem manifestação de vontade de agentes para criar transações e para validá-las, não há blockchain.

Os atos notariais são atos dotados de fé pública para formalizar a vontade jurídica das partes. Os atos registrais são atos dotados de fé pública para constituir, modificar ou extinguir direitos. Tanto uns como os outros são atos que consistem em intermediar a confiança sobre os atos da vida que as pessoas queiram ou precisem dar a qualificação de ato ou negócio jurídico.

Repetindo, a blockchain se baseia nos pilares: peer-to-peer – relação pessoa a pessoa e banco de dados distribuído com consenso sobre os requisitos de formação do banco de informações. Ela pode ser inserida no ambiente cartorário da seguinte forma:

- Elaboração de procuração pública – usuário solicita elaboração de ato; cartório elabora ato, conforme cheklist de documentos e conteúdo pré-estabelecido (smarts contracts); usuário assina digitalmente; cartório assina digitalmente.

- Incorporação imobiliária, desde a fase de aquisição de terreno (envolvimento do cartório de notas através da escritura pública com conteúdo pré-estabelecido - smarts contracts); emissão e recolhimento do ITBI (adquirente e prefeitura municipal - com conteúdo pré-estabelecido - smarts contracts); registro da aquisição do terreno (envolvimento do cartório de registro de imóveis com conteúdo pré-estabelecido - smarts contracts); obtenção de licenças para edificação (envolvimento da prefeitura municipal, do Estado ou da União, conforme o caso); elaboração do projeto de incorporação (incorporadora); registro da incorporação (envolvimento do cartório de registro de imóveis); emissão do alvará de habite-se e auto de vistoria do corpo de bombeiros (envolvimento de órgãos da prefeitura e do estado); averbação da construção (envolvimento do cartório de registro de imóveis); alienação de unidades construídas (envolvimento do cartório de notas através da escritura pública com comprador, vendedor e, se for o caso, credor fiduciário); registro da transmissão das unidades (envolvimento do cartório de registro de imóveis); pagamento das transmissões (envolvimento da instituição financeira.

- Compra e venda de terreno - instrumento contratual para aquisição de terreno (envolvimento do cartório de notas através da escritura pública); emissão e recolhimento do ITBI (adquirente e prefeitura municipal); assinaturas (envolvimento das partes); registro da aquisição do terreno (envolvimento do cartório de registro de imóveis).

- Compra e venda de imóvel já construído sem garantia fiduciária – instrumento contratual para aquisição de imóvel (envolvimento do cartório de notas através da escritura pública); emissão e recolhimento do ITBI (adquirente e prefeitura municipal); assinaturas (envolvimento das partes); registro da aquisição do imóvel (envolvimento do cartório de registro de imóveis).

- Compra e venda de imóvel já construído com garantia fiduciária – instrumento contratual para aquisição de imóvel (envolvimento do cartório de notas através da escritura pública); emissão e recolhimento do ITBI (adquirente e prefeitura municipal); assinaturas (envolvimento das partes); registro da aquisição do imóvel (envolvimento do cartório de registro de imóveis); instituição financeira realiza pagamento.

- Averbação de construção - obtenção de licenças para edificação (envolvimento da prefeitura municipal, do Estado ou da União, conforme o caso); emissão do alvará de habite-se (envolvimento da prefeitura municipal); recolhimento das contribuições previdenciárias sobre obra de construção civil (envolvimento da Receita Federal); averbação da construção (envolvimento do cartório de registro de imóveis).

Muitas outras aplicações podem advir de uma blockchain atrelada aos registros públicos.

4 – Recentemente você foi um dos palestrantes do painel Blockchain no Ecossistema Imobiliário. Em resumo, o que você levou do tema aos ouvintes do evento?

No evento realizado no início deste mês de novembro, em São Paulo, denominado “BLOCKCHAIN NO ECOSSISTEMA IMOBILIÁRIO: aplicabilidade atuais e possibilidades futuras”, apresentamos duas linhas de pensamentos: a primeira voltada para os agentes econômicos de que será muito difícil a sobrevivência de uma BLOCKCHAIN sobre o mercado imobiliário sem o cartório de registro de imóveis para registrar direitos reais sobre imóveis, porque o cartório de registro de imóveis detém a prerrogativa legal, a capacidade e base de informações para validar a titularidade da propriedade e demais direitos reais sobre imóveis, tendo condições de determinar a cadeia dominial histórica, a validação dos bens públicos, a delimitação física dos imóveis e a gênese das informações registrais de determinada região.

A segunda linha de pensamento foi voltada aos próprios registradores de que também não é possível exercer a prerrogativa dos registros no presente século XXI fora de um sistema de banco de dados distribuídos com descentralização das informações, pois a prerrogativa legal de exercer a qualificação registral pode ser transferida para criação de um novo modelo de transmissão da propriedade em que poderia ser desnecessário o princípio da continuidade e em que poderia ser criado um novo “bloco gênese” de informações que dariam suporte às transmissões imobiliárias em meio digital.

Em suma, uma blockchain imobiliária depende do cartório de registro de imóveis, porém o cartório de registro de imóveis deve ser ator (peer) numa blockchain imobiliária, sob pena de ser excluído num novo modelo de transação imobiliária.

5 - Os cartórios de Sergipe já colocaram a blockchain em suas agendas? Como estamos com relação ao seu uso?

Sim, a blockchain está na pauta e no planejamento estratégico dos cartórios em Sergipe. Temos realizado diversas palestras e reuniões com a participação de atores do setor de tecnologia, mercado imobiliário, financeiro, tabeliães, registradores, comissão de Direito Notarial e Registral da OAB/SE e o envolvimento de servidores da Corregedoria de Justiça do Estado de Sergipe para analisar essa nova tecnologia.

A tecnologia ainda não está sendo utilizada em Sergipe, mas já estão sendo avaliadas provas de conceito (PoC) realizadas no Sudeste do País para desenvolvimento de uma prova de conceito no estado de Sergipe. Uma Prova de Conceito (PoC – Proof of Concept) é uma expressão que denomina a criação de um modelo prático para provar um modelo teórico concebido por uma pesquisa. É uma implementação parcial de um método realizada com objetivo de verificar se o conceito ou teoria objeto da pesquisa é suscetível de ser desenvolvido de maneira útil.

Ao elaborarmos nossa Prova de Conceito sobre uso da blockchain no sistema imobiliário, iremos apresentá-la ao Tribunal de Justiça de Sergipe, que é um tribunal extremamente organizado e de vanguarda, que, não é à toa, em 2018, ganhou pelo segundo ano consecutivo o Selo Diamante do Conselho Nacional de Justiça, sendo o único do país entre os Tribunais com mesma atribuição a receber essa premiação. Acreditamos que nosso Tribunal de Justiça de Sergipe será mais uma vez pioneiro no país e, talvez, no mundo ao difundir o uso da tecnologia blockchain no mercado imobiliário e de registros públicos.

6 – Se você fosse sintetizar essa tecnologia em poucas palavras, como você a descreveria, em termos de importância e inserção nas nossas rotinas?

Blockchain é uma tecnologia que simplificará a vida do cidadão ao não precisar levar os mesmos documentos em várias repartições para resolver um problema só. Ao levar os documentos na primeira repartição e realizar a primeira validação, as demais ocorrerão dentro do sistema sem precisar que o cidadão se desloque para cada repartição. A partir de casa, ele poderá fazer qualquer serviço público através de notebook, tablet ou até mesmo celular, com envolvimento de todas as repartições (partes) necessárias com validação dos processos de suas competências.