Blockchain no sistema da propriedade imobiliária no Brasil

11/04/2020
18:49:27

Por Gabriel Campos de Souza

Tendo muitos empreendido a tarefa de conceituar e caracterizar a tecnologia denominada “Blockchain”, pareceu-me também conveniente a mim apresentar um conceito dessa tecnologia.

Blockchain é o nome dado à tecnologia de registro distribuído, do tipo de Base de Dados Distribuídos e Compartilhados, com registro de transações individuais e em blocos, caracterizada pela guarda de registro de transações permanentemente e à prova de violação através da criação de índice global linear e cronológico de todas os atos. Pela característica de funcionar como um índice global linear e cronológico, a blockchain tem sido denominada de livro-razão público.

A blockchain é composta por uma rede peer-to-peer e por um banco de dados distribuído descentralizado.

Uma rede peer-to-peer consiste num formato de redes de computadores onde cada um dos pontos da rede funciona como cliente e como servidor, permitindo compartilhamentos de serviços e dados entre si sem a necessidade de um servidor central. Essa rede serve melhor para o armazenamento de objetos imutáveis em face do compartilhamento dos dados entre os computadores, tais como músicas, vídeos, imagens, tarefas, trabalhos ou dados em formato digital em geral. A utilização de uma rede peer-to-peer para objetos mutáveis tem o desafio de gerenciar a sequência de versões daquele determinado dado digital e identificar a versão recente. Para isso, uma rede peer-to-peer pode usar servidores confiáveis gerenciar a sequência de versões. Cada computador na rede (par ou parceiro) tem iguais privilégios e influência no ambiente.

Na blockchain, quando uma nova transação entre na rede, essa transação é propagada por todos os pares, que atuam como os nós da rede. Na blockchain, a informação é encriptada para que seja possível identificar apenas a validade do ato.

Banco de dados consiste num conjunto organizado e ordenado de dados de arquivos relacionados entre si com informações sobre pessoas, lugares ou coisas. Esse conjunto organizado de dados se relacionam de forma a criar algum sentido aos dados e dar mais eficiência durante uma pesquisa ou estudo.

Banco de dados distribuído consiste na disponibilização da integralidade do banco de dados organizado e ordenado a todos os participantes da rede. Todos os usuários têm armazenado uma cópia de toda informação existente. Se um usuário deixa a rede, as informações compartilhadas permanecem. Se um usuário (nó) entre na rede, recebem informações de todos os usuários (nós) que já estão na rede.

Um banco de dados, como conjunto organizado e ordenado de dados de arquivos relacionados entre si, precisa ter um início.  Esse início pode ser conceituado como bloco gênese, que é o estado inicial do sistema codificado no software. O banco gênese contém informações sobre as regras ou instruções sobre o banco de dados a ser composto.

Na blockchain, o banco de dados é formado pela sequência de transações (série de blocos) entre as partes (peer-to-peer) que juntos formam uma cadeia de transações. Essa cadeia de transações (blocos) é que dá o nome de blockchain.

Cada bloco na cadeia contém informação ou transações entre as partes. À medida que mais transações são adicionadas, as informações são guardadas no bloco de acordo com o momento que ela foi processada. A inserção das informações no banco de dados em determinado tempo cria um histórico que documenta as transações no banco de dados, daí porque se caracteriza como um livro-razão compartilhado pelos atores na rede (peer-to-peer).

Após as transações serem organizadas cronologicamente na rede, uma assinatura (hash) é adicionada ao final do bloco. O hash é vinculado ao bloco imediatamente anterior na cadeia.

Estas assinaturas (“hashes”) formam as ligações entre as cadeias até chegar ao bloco gênese. O hash é configurado para incluir o número do bloco atual, o número do próximo bloco da cadeia, a data, o momento que foi assinado e a quantidade de transações inclusas no bloco presente. O hash é apresentado ao usuário como uma chave criptografada.

Na Blockchain, o algoritmo de consenso é um conjunto finito de ações executáveis que visam obter uma solução para o problema da confiança através do estabelecimento de regras para inclusão de novos dados na rede. Pelo algoritmo de consenso, nenhum dado inserido pode ser apagado e todas as novas inserções devem ser acreditadas por todos.

As regras do algoritmo de consenso são definidas pelos próprios atores (nós) participantes da blockchain. Somente pode ser considerado que um novo bloco foi criado caso este atenda também a regra definida pelo Algoritmo de Consenso. Assim, o novo bloco é incluído no Blockchain, tornando os novos dados públicos.

No sistema imobiliário, vejamos um exemplo de transação que pode ser operada numa rede blockchain. 

Um cidadão deseja comprar um imóvel que está à venda. O vendedor e comprador acertam as condições. Para negociação, qualquer um deles preenche um formulário eletrônico e solicita a lavratura de uma escritura de compra e venda ao conjunto de cartórios de notas que está dentro de uma determinada rede blockchain.

Seguindo regras de sorteio, um cartório de notas recebe a solicitação e inicia o processo de lavratura da escritura de compra e venda.

Após a lavratura da escritura, aquela escritura no meio eletrônico será enviada à rede blockchain. O Algoritmo de Consenso identifica a transação, envia para o grupo de competência e escolhe alguns atores ou nós da rede (1, 2, 3 ou mais cartórios) de forma randômica para validar aquela escritura pelas regras contidas no Algoritmo de Consenso, tais como capacidade dos agentes, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, dentre outros.

A validação da escritura como negócio jurídico poderá ser totalmente eletrônica, manual ou híbrida e será feita por outros cartórios de notas, que fazem parte do mesmo grupo de competência. Validada a escritura, ela entra na rede e é propagada por todos os pares, que atuam como os nós da rede.

Em sequência, o comprador encaminha essa escritura eletronicamente ao cartório de registro de imóveis competente. O cartório de registro de imóveis competente realiza a qualificação da escritura, principalmente em relação ao seu objeto, o imóvel registrado, e os direitos reais transmitidos, modificados ou extintos.

Feita a qualificação positiva, ou seja, a escritura é título hábil ao registro, o cartório de registro de imóveis realiza os atos de registro e encaminha para a rede blockchain. O Algoritmo de Consenso identifica a transação, envia para o grupo de competência e escolhe alguns atores ou nós da rede (1, 2, 3 ou mais cartórios de registro de imóveis) de forma randômica para validar os atos registrais pelas regras contidas no Algoritmo de Consenso, tais como título, disponibilidade do imóvel e direitos reais transmitidos, modificados ou extintos.

A definição de um Algoritmo de Consenso pelas partes envolvidas faz com que as decisões sobre o que será inserido do Blockchain não dependam de nenhuma parte centralizadora, garantindo assim a sua independência. Cada ator na rede tem a capacidade de verificar a autenticidade de cada bloco contido na Blockchain e constatar por si só a autenticidade de todos os dados nele inseridos.

Nesse ponto, podem ocorrer duas perguntas com subdivisão ao leitor:

1 - Mesmo com a blockchain, por que se faz necessário o cartório de notas para lavrar uma escritura para transmitir a propriedade? Não poderia deixar de existir o cartório de notas nesse contexto?

2 - Mesmo com a blockchain, por que se faz necessário o cartório de registro de imóveis para realizar o registro de transmissão da propriedade? Não poderia deixar de existir o cartório de registro de imóveis nesse contexto?

A nosso ver, a resposta é negativa.

Primeiro, porque o sistema de transmissão da propriedade no Brasil privilegia dois eventos: o título e o modo, sem os quais não há transmissão da propriedade.

Um caso fora do mercado imobiliário para ficar claro: ao comprar um veículo, é celebrado um contrato de compra e venda, podendo ser consubstanciado através da Nota Fiscal da concessionária ou através da ATPV – Autorização para Transferência da Propriedade Veicular. Porém, a adquirente não pode circular simplesmente com a Nota Fiscal da concessionária ou através da ATPV – Autorização para Transferência da Propriedade Veicular, ainda que com as firmas do vendedor e comprador, reconhecidas em cartório de notas. É necessário o registro da aquisição perante o DETRAN. O título é a Nota Fiscal da concessionária ou através da ATPV – Autorização para Transferência da Propriedade Veicular. O modo é o registro no DETRAN.

Logo, o processo registral de veículo é TÍTULO (nota fiscal ou ATPV - manifestação da vontade das partes) e o MODO (registro no DETRAN), na forma do art. 120 e seguintes do Código de Trânsito Brasileiro.

Outro exemplo: ao comprar ações no mercado de valores mobiliários, é celebrado um contrato de compra e venda de valores mobiliários através das corretoras de valores mobiliários que representam os acionistas compradores e vendedores. Após a celebração do contrato, no qual compradores e vendedores são representados pelas suas sociedades corretoras, é feito o registro do nome do acionista no Livro de “Registro de Ações Nominativas” ou pelo extrato que seja fornecido pela instituição custodiante, na qualidade de proprietária fiduciária das ações (Lei 6.404, art. 31, caput, e parágrafos).

Voltando ao aspecto imobiliário, o título é o documento revestido de força legal que contém operações contratuais imobiliárias que visam constituir, transmitir, modificar ou extinguir direitos reais sobre imóveis.

As operações contratuais imobiliárias, dentre outras, são a compra e venda, a doação, as cédulas de crédito, as garantias, as cessões, as partilhas, a dação em pagamento, o parcelamento do solo. São exemplos de títulos: escritura pública, formal de partilha, mandado judicial, instrumento particular com força de escritura pública, instrumento particular autorizado em lei, requerimentos para atos de averbação, etc.

Os direitos reais são, dentre outros, a propriedade, a alienação fiduciária, a hipoteca, o penhor, o usufruto, a servidão, o uso, a habitação, entre outros.

O modo consiste na qualificação formal do título e na qualificação do objeto do registro (imóvel) e dos direitos que serão objeto de registro.

Portanto, o sistema da propriedade no Brasil privilegia o processo registral do título, que é o conjunto dos atos que visam constituir, transmitir, modificar ou extinguir os direitos reais sobre imóveis composto pelo título, que é a operação contratual que tem a manifestação de vontade das partes, e composto pelo modo, que é a qualificação formal do título com a prática do ato registral.

Em suma, o processo registral é TÍTULO (manifestação da vontade das partes) e o MODO (registração), na forma do art. 1.245 do Código Civil.

E por que é assim? Porque o sistema de propriedade brasileiro privilegiou que um agente faça a coleta da manifestação da vontade das partes e que outro agente centralize o objeto da transação.

Por essa razão, retirar o cartório de notas ou o cartório de registro de imóveis do processo registral da propriedade imobiliária, ainda que sustentado em rede blockchain, é desconstituir o sistema de propriedade brasileiro como um todo.

A segunda razão pela qual não se pode excluir os cartórios de notas e de registro de imóveis da rede blockchain que trate sobre a propriedade imobiliária é a de que as pessoas que transacionam numa rede não detêm todo o conhecimento necessário para a constituição jurídica da operação. O fato de uma pessoa ser dona de um imóvel e resolver vendê-lo a outra que quer compra não é por si só, como pensam alguns, elemento exclusivo para a operação em blockchain.

Isto porque: quem garante que aquele que se diz dono é verdadeiramente o dono? E se o imóvel estiver penhorado? E se aquele que se diz dono estiver indisponibilizado? E se o terreno, por exemplo, não existir? E se não tiver as reais dimensões anunciadas? E se o vendedor virtual em verdade estiver interditado e sem capacidade?

Os atos notariais são atos dotados de fé pública para formalizar a vontade jurídica das partes. Os atos registrais são atos dotados de fé pública para constituir, modificar ou extinguir direitos. Tanto uns como os outros são atos que consistem em intermediar a confiança sobre os atos da vida que as pessoas queiram ou precisem dar a qualificação de ato ou negócio jurídico. Sem os agentes notariais e registrais, as pessoas que operam na rede podem não saber avaliar a capacidade civil das outras partes, não saber avaliar a juridicidade do objeto, a possibilidade e determinação desse objeto, nem as situações a que pode estar sujeito o imóvel ou o titular da propriedade.

Como dito, a blockchain se baseia nos pilares: peer-to-peer – pessoa a pessoa e banco de dados distribuído com consenso sobre os requisitos de formação do banco de informações. A elaboração de algoritmo de consenso presume que todas as partes têm ciência de todas as regras de validação.

Logo, sem os notários e registradores, é muito difícil para não dizer impossível que as pessoas usuárias de uma rede blockchain para transmissão da propriedade imobiliária conheçam todas as regras do sistema de propriedade brasileiro.

Para finalizar, apresento outros exemplos, dentre muitos outros, que podem ser praticados dentro de uma blockchain notarial e registral: Incorporação imobiliária, desde as fase de aquisição de terreno (envolvimento do cartório de notas através da escritura pública com conteúdo pré-estabelecido - smarts contracts); emissão e recolhimento do ITBI (adquirente e prefeitura municipal - com conteúdo pré-estabelecido - smarts contracts); registro da aquisição do terreno (envolvimento do cartório de registro de imóveis com conteúdo pré-estabelecido - smarts contracts); obtenção de licenças para edificação (envolvimento da prefeitura municipal, do Estado ou da União, conforme o caso); elaboração do projeto de incorporação (incorporadora); registro da incorporação (envolvimento do cartório de registro de imóveis); emissão do alvará de habite-se e auto de vistoria do corpo de bombeiros (envolvimento de órgãos da prefeitura e do estado); averbação da construção (envolvimento do cartório de registro de imóveis); alienação de unidades construídas (envolvimento do cartório de notas através da escritura pública com comprador, vendedor e se for o caso credor fiduciário); registro da transmissão das unidades (envolvimento do cartório de registro de imóveis); pagamento das transmissões (envolvimento da instituição financeira; Averbação de construção - instrumento contratual para aquisição de terreno (envolvimento do cartório de notas através da escritura pública); emissão e recolhimento do ITBI (adquirente e prefeitura municipal); registro da aquisição do terreno (envolvimento do cartório de registro de imóveis); obtenção de licenças para edificação (envolvimento da prefeitura municipal, do Estado ou da União, conforme o caso); emissão do alvará de habite-se (envolvimento da prefeitura municipal); recolhimento das contribuições previdenciárias sobre obra de construção civil (envolvimento da Receita Federal); averbação da construção (envolvimento do cartório de registro de imóveis).

Diante de todo o exposto, entendo que a blockchain é plenamente aplicável ao sistema brasileiro da propriedade imobiliária, entretanto não dispensa a participação dos agentes capacitados tecnicamente para validação da vontade das partes e para qualificação do objeto e dos direitos envolvidos na transação imobiliária.

*Gabriel Campos de Souza é especialista em Direito Processual Civil e em Direito Imobiliário. Oficial Registrador de Imóveis, Pessoas Jurídicas, Títulos e Documentos e Pessoas Naturais do Cartório do 2º Ofício de Capela/SE. Diretor de Tecnologia da Informação e Qualidade da ANOREG/SE.