Passagem Forçada

27/05/2019
13:26:56

*Pedro Ernesto Celestino Pascoal Sanjuan


O instituto de passagem forçada consubstancia-se no direito do proprietário do imóvel sem acesso para a via pública, de buscar o mencionado acesso, constrangendo o vizinho a lhe conceder a passagem, mediante o pagamento de indenização, a ser judicialmente fixada, se assim necessário.

O mencionado instituto possui expressa previsão legal no art. 1.285, do Código Civil vigente, cujo dispositivo segue abaixo transcrito:

                                        Seção III

Da Passagem Forçada

Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.

§ 1o Sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem.

§ 2o Se ocorrer alienação parcial do prédio, de modo que uma das partes perca o acesso a via pública, nascente ou porto, o proprietário da outra deve tolerar a passagem.

§ 3o Aplica-se o disposto no parágrafo antecedente ainda quando, antes da alienação, existia passagem através de imóvel vizinho, não estando o proprietário deste constrangido, depois, a dar uma outra.

Pela própria topografia do dispositivo acima transcrito, no capítulo V do Código Civil que versa sobre o direito de vizinhança, resta muito claro o interesse social do instituto, sobretudo diante da hermenêutica constitucional que preconiza a função social da propriedade, de modo que resulta da consideração de que não pode um prédio perder a sua finalidade e valor econômico por falta de acesso à via pública.

Nessa quadra, diferente da servidão que é um direito real sobre coisa alheia, a passagem forçada é uma limitação ao direito de propriedade decorrente do interesse público do direito de vizinhança, ou seja, uma imposição da solidariedade entre os vizinhos.

Nesse sentido, esclarece Luiz Antônio Scavone Filho:

Não se trata de servidão, que é um direito real sobre coisa alheia em razão de negócio jurídico e comodidade do imóvel dominante. Diferente disso, a passagem forçada é limitação ao direito de propriedade, decorrência das normas que tratam da vizinhança e de decisão judicial, sempre pelo modo menos gravoso.

O eminente doutrinador Flávio Tartuce segue na mesma linha:

A encerrar o presente tópico, cumpre confrontar a servidão com institutos afins. Inicialmente, repise-se que a servidão não se confunde com a passagem forçada. A servidão é facultativa, não sendo obrigatório o pagamento de uma indenização. A passagem forçada é compulsória, assim como é o pagamento da indenização. A servidão é direito real de gozo ou fruição. A passagem forçada é instituto de direito de vizinhança, presente somente na situação em que o imóvel encravado não tem saída para a via pública (art. 1.285 do CC/2002). A servidão envolve os imóveis dominante e serviente; na passagem forçada estão presentes o imóvel encravado e o serviente. Na servidão cabe a citada ação confessória; na passagem forçada, para a defesa do direito, a ação cabível é denominada ação de passagem forçada. Em reforço, pode-se dizer que a passagem forçada constitui uma servidão legal e obrigatória; ao contrário da servidão propriamente dita, que é convencional.

Ainda, vale colacionar, porquanto bastante elucidativo, exemplo doutrinário do eminente jurista Arnoldo Wald que evidencia a diferença entre os dois institutos:

(...) "Um exemplo ilustrará a diferença. O proprietário do prédio encravado, sem acesso à via pública, pode, em virtude de lei, exigir a passagem pelo terreno alheio. É o direito de passagem forçada, ao qual já aludimos ao estudar os direitos de vizinhança. Emana da lei, e, sem ele, seria impossível ao proprietário do prédio encravado entrar e sair livremente do seu terreno. Vejamos agora uma situação distinta. Um terreno tem um acesso remoto ou estreito a determinada estrada secundária. O terreno vizinho é, todavia, atravessado por excelente estrada principal, à qual o proprietário do primeiro terreno desejaria ter acesso, pedindo, pois que lhe seja concedida uma servidão. Depende tal concessão da boa vontade ou do interesse econômico do proprietário do prédio serviente que iria ser atravessado. Não é um direito emanado da lei. Poderá surgir em virtude de contrato que as partes venham a fazer e que, para valer contra terceiros, deverá constar no Registro de Imóveis." 

Dessa forma, resta hialino que o direito de passagem forçada pode ser exercido mesmo sem a concordância do vizinho que concederá a passagem, por tratar-se de um direito potestativo – por isso não sujeito à prescrição - cabendo ao mesmo o recebimento de indenização, sendo que “essa indenização levará em conta a diminuição de valor da propriedade pela passagem de terreno alheio e a moléstia por ela ocasionada. Independe de culpa e decorre simplesmente do direito de vizinhança.” 

Da análise do caput do art. 1.285 do Código Civil é possível extrair que a taxatividade do exercício do direito a passagem forçada, não se limita àquele que não tem acesso à via pública, ou seja, ao imóvel absolutamente encravado.

Nesse sentido, é o Enunciado nº 88 do Conselho da Justiça Federal, a saber:

Art. 1.285: O direito de passagem forçada, previsto no art. 1.285 do CC, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica.

Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

CIVIL. DIREITOS DE VIZINHANÇA. PASSAGEM FORÇADA (CC, ART. 559). IMÓVEL ENCRAVADO. Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do interesse público; juridicamente, encravado é o imóvel cujo acesso por meios terrestres exige do respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem inutilizar o terreno do vizinho, que em qualquer caso será indenizado pela só limitação do domínio. Recurso especial conhecido e provido em parte. (REsp 316.336/MS, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/08/2005, DJ 19/09/2005, p. 316)

Nessa quadra, os parágrafos do artigo em estudo, impõem precisamente quem são os legitimados a conceder a passagem. Nesse sentido é o escólio de Pedro Elias Avvad:

O § 1º do citado art. 1.285 declara que deverá sofrer o constrangimento o imóvel que mais natural e facilmente se prestar a dar a passagem. Já o § 2º prevê a hipótese de perda da passagem em virtude de alienação parcial do prédio, quando então, o proprietário da outra parte terá que fornecer o acesso. O § 3º admite, no caso do parágrafo anterior, a existência de uma passagem por dentro do imóvel antes da sua alienação, hipótese em que o proprietário do imóvel em causa não ficará obrigado a conceder outro acesso. Nesse caso, ficará mantida a passagem então existente.

Dessa forma, cotejando os §§ 1 e 2º do dispositivo acima transcrito, compartilhamos do entendimento que a passagem deverá ser suportada preferencialmente pelo causador do encravamento, de modo que quando da subsunção do caso concreto a norma é imperioso perquirir qual dos imóveis lindeiros promoveu o encravamento, e, não sendo possível a passagem por esse, buscaria aquele que mais natural e facilmente se prestar a dar a passagem.

Assim, o breve ensaio teve como objetivo demostrar o interesse social do instituto da passagem forçada, sob o enfoque da função social da propriedade, estabelecendo as principais diferenças com a servidão.

REFERÊNCIAS

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012.

AVVAD, Pedro Elias. Direito Imobiliário: Teoria Geral e Negócios Imobiliários. 3º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 140.

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 14 de maio de 2019.

SCAVONE JÚNIOR, Luiz Antônio. Direito Imobiliário: Teoria e Prática. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 805.

TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 4: Direito das Coisas. 9. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 236.

WALD, Arnoldo. Direito civil: direito das coisas. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pág. 263.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 9º ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 284.

*Pedro Ernesto Celestino Pascoal Sanjuan é Mestre em Direito pela Universidade Tiradentes (UNIT). Especialista em Direito Imobiliário pela Universidade Anhanguera. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Graduado em Economia pela Universidade Tiradentes (UNIT). Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SE. Diretor em Sergipe do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM). Membro da Comissão de Direito Notarial e Registral do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (IBRADIM). Membro do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Aracaju (CONDURB). Pesquisador no grupo de pesquisa “Constitucionalismo, Cidadania e Concretização de Políticas Públicas”. Advogado. Parecerista. Autor de livros e artigos jurídicos.